O fim da transmissão do HIV só acontece se a luta for de todos

0
25
Visualizações

Nesta primeira semana de outubro de 2024, em Lima, no Peru, ocorreu a conferência da Associação Internacional de Aids (IAS). O destaque foi para as barreiras que ainda precisam ser superadas para garantir que todos, especialmente os mais vulneráveis, tenham acesso à prevenção conforme suas necessidades. Uma dessas barreiras, talvez a principal e que com a qual convivemos há 40 anos, continua sendo a indústria farmacêutica e sua falta de transparência quanto à capacidade de produzir, registrar e vender a preços justos os novos medicamentos injetáveis de PrEP de longa duração, como o lenacapravir, da Gilead. O alerta que ficou da conferência é claro: se países e instituições internacionais não utilizarem todos os instrumentos e arranjos regulatórios disponíveis, o conhecimento existente para eliminar a transmissão do HIV como problema de saúde pública será refém de interesses comerciais.

Durante seis dias, pesquisadores e representantes de diversos setores revisaram o conhecimento sobre a prevenção do HIV. Apesar dos avanços, a vacina e a remissão da infecção sem antirretrovirais ainda são promessas. Assim, a PrEP se consolida como o principal método de prevenção, com grande potencial para eliminar a transmissão do HIV. Novos produtos em fase de pesquisa buscam ampliar as escolhas individuais de prevenção, oferecendo maior comodidade e segurança no uso.

Chamaram atenção os investimentos na combinação de medicamentos de PrEP com anticoncepção, na forma de anel vaginal ou comprimidos, novas opções para uso sob demanda, como ducha anal ou um único comprimido, e implantes subcutâneos para a aplicação de medicamentos de longa duração, incluindo o uso conjunto de antirretrovirais e anticoncepcionais.

No entanto, nenhuma dessas opções representa uma mudança significativa em relação ao que já conhecemos: PrEP oral, modalidades específicas para mulheres e injetáveis de longa duração, que oferecem proteção ou a cada relação sexual ou por períodos de seis meses. Assim, parte importante da conferência foi dedicada à implementação da PrEP. O maior desafio é superar as desigualdades. O caminho apontado foi colocar os mais excluídos no centro das respostas, com protocolos simplificados que facilitem e geram comodidade no uso.

É nesse ponto que volto à indústria farmacêutica. Estudos de PrEP com lenacapravir mostraram que aplicações do medicamento, a cada seis meses, reduziu o risco de infecção em quase 100%. Isso supera muitas dificuldades de adesão que vemos nas outras modalidades de PrEP.

Nunca chegamos tão perto desse resultado com vacinas para o HIV, nem de eliminar a transmissão como problema de saúde pública. No entanto, esse conhecimento é monopólio da Gilead, que decide sozinha, segundo seus interesses, o quanto produzir, a quais países oferecer e a que preço. O desenvolvimento do lenacapravir, aliás como qualquer conhecimento científico existente, é resultado do esforço coletivo da humanidade. A Gilead deve ser remunerada por seu trabalho, mas o acesso global ao medicamento precisa ser gerido pelas Nações Unidas e pelos países. A recente experiência com a Covid-19 nos mostrou o custo em vidas de uma má gestão do acesso a medicamentos e vacinas.

Não posso deixar de mencionar o cenário preocupante da América Latina apresentado na conferência. A região, ao contrário dos países africanos, tem visto aumento na incidência de HIV e nesse evento, teve uma participação quase insignificante. A ausência de representantes de boa parte dos países, do escritório regional da UNAIDS e do movimento social foi notável. Uma exceção foi o Município de São Paulo, que, com políticas de acesso à PrEP, incluindo tessaúde, oferta na comunidade e máquinas de dispensação, tem conseguido reduzir a incidência de HIV na cidade.

A conferência foi encerrada com protestos de lideranças de mulheres cis e trans peruanas, criticando a exclusão do movimento social do evento, realizado em um hotel de luxo com taxa de inscrição de U$S 710,00. A palavra de ordem foi: “não seremos sujeitos passivos de pesquisas”. Esse protesto, a meu ver, expôs algumas lacunas da agenda de pesquisa em prevenção nesta conferência. O estigma, as desigualdades, os determinantes sociais e a participação comunitária foram tratados de forma marginal.

A lição que fica dessa conferência é que precisamos recuperar o pluralismo e o protagonismo dos diferentes atores, desde o nível local, para que a agenda e conhecimento da pesquisa não sejam monopólios e privilégios.

Alexandre Grangeiro, pesquisador científico, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo

Fonte: Agencia Aids